segunda-feira, 8 de outubro de 2007

~>Porque somos tão ligados á televisão?

"A imagem da besta", copyright Folha de S. Paulo, 23/02/03

"QUEM ENTRA em São Paulo pela marginal do Tietê, vindo da rodovia Ayrton Senna, depara-se com um cartaz altíssimo, fincado no limite entre uma favela e o asfalto, onde, grafada em pesadas letras negras, está a seguinte frase: ‘A televisão é a imagem da besta’. Podemos rir interiormente da paranóia religiosa, podemos nos sentir superiores diante da simplicidade do autor anônimo da mensagem, mas há algo nessa asserção que não deveria nos espantar. Afinal, essa mesma idéia, de que a televisão representa algum tipo de força maléfica, expressa com palavras menos sensacionais e com graus variáveis de elaboração intelectual, encontra-se mais do que disseminada.


‘Ópio do povo’, aquele eletrodoméstico que teria o poder de nos deixar ‘burros demais’, ou, mais recentemente, o reino ignóbil do que se convencionou classificar de ‘baixaria’, não há quem não se apresse a falar mal da TV. Como num encantamento às avessas, soltamos muxoxos de desprezo e desaprovação ao ser pronunciada a palavra televisão numa conversa. Às vezes, concede-se apreciar aqui e ali algum programa de entrevistas metido a inteligente ou algum canal (em geral, da TV paga) dedicado a documentários ou à emissão de espetáculos da chamada alta cultura (concertos, balés, óperas, filmes de arte) ou, se vier de alguém mais jovem, de algum seriado admitido no cânone pop. Ou pode-se também apelar para a desculpa da ‘falta de tempo’, mas o fato é que a necessidade de não se deixar confundir por alguém que goste de televisão sem restrições é imperativa dentro da classe média alfabetizada.


Se, no nível individual, ver televisão não é considerado um hábito, no mínimo, muito confessável, no âmbito coletivo a associação entre TV e mal toma ainda mais corpo. Especialistas de várias áreas estudam os efeitos nocivos da televisão em crianças e jovens -da obesidade à sexualização precoce, da banalização da violência à degradação do hábito de leitura, é a televisão responsável por vários males que assolam os corpos e mentes dos mais jovens. Grupos sociais diversos se assustam e reagem ao uso da TV como veículo de propaganda, seja pelo governo, pelo mercado, pela religião, pelos fabricantes de margarina ou de sabão em pó, seja por grupos adversários.


O que há, afinal, de tão ameaçador na TV que exige esse posicionamento constante? Talvez uma resposta venha de admitirmos que o medo é proporcional ao fascínio: tememos e atacamos a televisão porque ficamos hipnotizados por ela. O consumo passivo de imagens, a ligeireza do esforço intelectual exigido e a capacidade de produzir sensações que nos tocam na superfície dão alguma espécie de conforto emocional que se tornou mais ou menos necessário à vida moderna. Com a desculpa de informar ou de entreter, a televisão nos rouba bons nacos de tempo, o que evita a angústia de se confrontar com a constatação de não ter nada muito mais significativo, interessante ou importante a fazer com ele.


Da boca para fora, entretanto, ver TV permanece como um hábito deletério, um vício nefasto, um comportamento a ser regrado, uma fraqueza a ser superada. E, no entanto, em quase todas as casas, pelo menos no Brasil, lá está um aparelho de televisão, pronto a ser ligado, pronto a transmitir as imagens da incultura, da violência, da ‘baixaria’ (o que quer que seja isso), do sentimentalismo, do espetáculo. Em suma, de tudo aquilo que nos estranha ser tão familiar. É que, no fundo, gostamos, e não pouco, da besta. Ou de ser um pouco bestas?"

TV / ÓPIO DO POVO
Bia Abramo

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